terça-feira, maio 26

Confortáveis

Ela estava com vontade de matar alguém. Uma morte lenta e dolorosa, mas ainda assim, extremamente violenta. Saíra de uma reunião tão estressante, que Buda algum teria mantido a calma e o sorriso falso no rosto da forma como ela conseguiu. Claro que a vontade de matar era pura figura de linguagem, mas certamente a necessidade pelo cigarro, não. Como pode algum cliente interno se fingir de burro de forma tão exacerbada como aquele calhorda fez, só para ganhar tempo, para disfarçar a total incompetência para finalizar ou ao menos dar um mínimo de andamento ao projeto? Ou, pior, como uma pessoa tão burra como ele, caso não estivesse fingindo, ainda conseguia um emprego? Desceu correndo pelas escadas. Não aguentaria ficar esperando o elevador.

No térreo, saiu pelo estacionamento. Não queria ficar de conversa com ninguém. Só queria fumar. Acendeu o cigarro, deu a primeira e deliciosa tragada, que a fez sentir a nicotina correr por suas veias, e sentiu o celular vibrar em seu bolso.

“Oi, Sra. Cassia.”

Caralho! Não era possível! Não era possível! Não era possível! Como esse canalha consegue? A raiva e a frustração pela reunião se misturaram ao êxtase do momento que o cigarro trouxe junto com aquele singelo e certeiro “oi” e seus olhos se encheram de lágrimas. Canalha safado! Como ele consegue ser tão certeiro e sempre mandar a mensagem na hora que ela mais precisa? Fosse ela paranoica, teria certeza que estava sendo seguida.  Mas além de não ser nada paranoica, ela sabe que ele não faria esse tipo de coisa. Respirou fundo.

“Oi, Caio. Como você consegue?”

Eles se conheciam desde a infância. Seus pais trabalhavam juntos desde a juventude e eram tão amigos que não só ela é afilhada do pai do Caio, como ela não se lembra de ter ficado uma semana completa, ao menos até o final da adolescência, sem que visse seus padrinhos – e o Caio, consequentemente. Estavam sempre na casa um do outro. Eram quase parentes. E, assim, durante toda a adolescência, enquanto Caio se transformava em um homem lindo, divertido, inteligente e gostoso, ela, como seria natural para uma menina quase seis anos mais nova, descobriu nele a grande paixão platônica de sua vida, por mais errado que este sentimento fosse.

“Consigo o quê?”

Como poderia uma menina de 14 anos, por exemplo, por mais sucesso que fizesse na escola, não só entre os meninos de sua classe, pensar em ter algo com seu quase-primo de 20 anos, que estava na faculdade cercado por mulheres maduras e tão ou mais lindas que ela própria? Ainda mais se ele sempre a tratou como prima-irmã, claramente não vendo nela uma mulher.

“Você sempre acerta os momento... Tudo bem?”

Só que ela não sabia que, desde quando ela tinha seus doze ou treze anos e começou a desabrochar nela uma feminilidade lasciva, Caio se deliciava com sua beleza, adorando fazê-la rir de suas piadas. E ela nunca saberia, não fosse uma daqueles constantes viagens à chácara que seu padrinho tinha, que ficava há uma ou duas horas da capital, onde sempre faziam churrascos, onde passavam a tarde na piscina, onde os adultos bebiam até caírem no sono ao final do dia Ela nunca vai esquecer .

“Ah, Cassia, você esquece que você é minha? Eu não adivinho, eu sei quando você precisa de mim: o tempo todo.”

É, ele sabe.  Desde que aquele que deveria ter sido só mais um final de semana na chácara, que ficaria perdido na memória, misturado a tantos outros iguais. Mas naquele final de semana no meio de Julho, com o frio lhe abraçando por completo, sem piscina, sem tanto humor, quando tudo tinha que ser tedioso para uma jovem de dezoito anos, cheia de vida, vendo todos acabarem com garrafas e mais garrafas de vinho ao redor da fogueira, sem mais nada para fazer, ele fez tudo mudar, tudo ficar diferente, tudo ficar especial e mágico com um simples “vem aqui comigo” dito tão furtivamente no começo da noite, tirando ela do meio dos adultos sem que ninguém se importasse com isso, sem que ela esperasse por nada de diferente

 “Ah, seu ridículo! Não inverta as coisas, não. Você que não vive sem mim!”

O vento gelado na piscina escura, o frio que corta a pele, a fuga para atrás da casa de máquinas, o suave empurrão que colou as costas dela contra a parede, a respiração, olhos nos olhos, aqueles olhos hipnotizantes, aquela boca tão desejada e o beijo. Ah, o beijo. O mais gostoso e esperado beijo da vida de alguém. O beijo mais errado possível, o segredo mais bem guardado, o ato mais gostoso, a sensação que faz vibrar o corpo inteiro toda vez que é repetido. Tudo daquele dia e de todos os outros dias são tão inesquecíveis, que foi pensado e lembrado inclusive durante os dois casamentos.

Seu telefone tocou. Era ele. Sim, ela também o tem ele na palma das Mãos e ela sabe muito bem.

“Oi.”

Ele riu a risada mais gostosa do mundo, a risada pela qual ela se apaixonou ainda criança.

“Me conta como alguém viveria sem você?”, ele perguntou.

Ela riu.

“Ah, fácil. É só casar com minha melhor amiga.”

“Ah, é para pegar pesado?”

Ela ria, nervosa e relaxada ao mesmo tempo.

“Você não tem ideia do que foi ficar no altar vendo você casando com a Débora.”

“E você não tem ideia do que foi casar com outra mulher vendo você no altar. Você não devia ter aceitado ser a madrinha dela.”

“Sim, verdade, eu devia ter falado ‘amiga, desculpe, não posso ser a madrinha porque seu noivo é o grande amor da minha vida e eu sou o grande amor da vida dele’. Você tem razão”, ela disse cheia de ironia.

Ele riu:

“Foda.”

“É, foda.”

“Mas mais foda foi você me chamar para ser padrinho do seu filho.”

Ela gargalhou alto, já sem o mínimo sinal do estresse que a fez descer para fumar.

“Já que você não pôde ser o pai...”

Ele riu, novamente:

“Sua filha da puta!”


“Também te amo, Caio.”

“Porra, preciso te ver hoje.”

Ela sorriu tanto que ficou nítido em sua voz.

“Hoje é impossível. O Rodrigo vai me levar no cinema.”

“Vou te esperar na saído do seu trabalho. Depois você vai ver seu marido.”

“Tá bom. Eu saiu às dezessete e trinta”, disse submissa.

“Eu sei, boba. Vou chegar antes até. Dezessete e vinte estou na portaria. Estou levando as algemas. Até mais tarde. Beijão.”

Riram.

“Beijo”, ela se despediu.

O coração disparou como quando ela tinha 18 anos. Puta merda. Puta merda. Que delícia!

Ela acendeu outro cigarro.

Não é fácil se despistar de alguém, quando o alguém é a pessoa certa, a pessoa que te deixa entregue e confortável. O desejo é tão forte e é tão fácil falar sim, que precisa se esforçar para não ficar que nem brinquedo. E não há nada mais gostoso que se deixar ser um brinquedo na mão do tal alguém.
Voltou relaxada para sua mesa e foda-se se alguém tentar estressar ela.

___

O relógio marcava dezoito horas e treze minutos. Cassia marcou com seu marido de se encontrarem no cinema às dezenove horas, para comerem algo ante da sessão das 20h15. Por sorte, o cinema ficava a dez minutos de seu trabalho. Mas... Cadê o Caio?

Já fazia quarenta e cinco minutos que ele devia ter chegado. Já fazia quarenta e cinco minutos que ela esperava sentada em um banco, na calçada em frente à portaria do prédio em que trabalha. Suas tentativas de contato eram frustrantes. Era falta de sinal ou celular desligado? Ela precisava saber dele!

___

Caio realmente devia ter chegado. Às dezessete horas em ponto, ele desligou o computador. Em cinco minutos, ele estava de jaqueta e capacete, sentado sobre sua moto. Mas quando ele ligou o motor, Rodrigo, o marido da Cassia apareceu à sua frente. Um frio na barriga, a certeza que ele sabia de tudo. Moto desligada, capacete tirado.

“Caio”

“Rodrigo? Cara, tudo bem? O que você está fazendo aqui?”

“Não sei. Não sei. Você tem algum compromisso agora?”

“Tenho. Estou indo encontrar sua mulher para dar ao menos um beijo nela antes do cinema de vocês. Se der tempo, um motel rapidinho não está fora dos planos”, pensou Caio, que riu com seu pensamento.

“O que foi?”

“Não, nada. Desculpe. É que eu estou para comprar um tapete que a Anna tem me pedido há dias, enchido o meu saco, e eu sempre tenho uma desculpa. Eu prometi hoje para ela que compraria...”.

Toda boa mentira tem que ter uma verdade absoluta como base.

“... mas de verdade, um tapete não é prioridade se você, compadre, precisa de mim. O que foi?”

Caio estava tenso e preparado para se esquivar de um soco. Punhos fechado, músculos tensionados, mas disfarçava com um sorriso nos lábios.

“Ah, desculpe. Eu não sei. A Cassia... Tem alguns dias que ela está diferente. Alguns muitos dias. Eu não sei, mas como você é o mais próximo de irmão que ela tem, acho que, sei lá... Mas não precisa ser hoje. Podemos marcar? Amanhã ou depois de amanhã, você escolhe o dia.”

“Ei, calma, meu amigo. Calma. Não vamos ‘marcar’ porra nenhuma. O dia é hoje. O momento é agora. Vamos”, Caio desceu da moto. “Vamos tomar um cerveja ali na esquina para conversar.”

“Não quero te prejudicar com a Anna...”

“Relaxa. Ela vai entender. Vou até deixar o celular desligado para ela não perturbar.”

Entre cervejas, o Rodrigo desabafou uma suspeita de traição. Por isso até que ele a chamou para o cinema hoje, que saíram para jantar noite retrasada e tem procurado reconquistar a esposa. Depois de seis anos de casados, ela anda fria, ausente... Infeliz. A palavra certa era esta: infeliz. Fazia algumas semanas que não se tinha mais a risada gostosa dela, o lindo sorriso, nem ao menos o brilho incrível do olhar. Rodrigo começo ficou preocupado, mas ele percebeu alguns sinais que o deixou desconfiado, como o esmorecimento nítido no semblante dela o dia que ele foi busca-la no trabalho, com um presente e um convite para jantar.

Caio tratou de demonstrar o choque, real, sobre o assunto. Ele nunca imaginou que sua amada estivesse infeliz. Seria culpa dele? Seria por ele? Como iria resolver isso, caso fosse? Ele faria qualquer coisa pela felicidade dela, mas, como? Iriam os dois se separar? E os filhos? Ele não quer se separar do Pedro, seu filho de quatro anos e tem certeza que Anna não facilitaria sua vida. Mas é ainda pior. E os amigos? E seu pai? E os pais dela, como ficariam? Como ficaria a amizade dela com Anna? O Rodrigo, coitado, como iria enfrentar essa situação? Caralho, se fosse isso mesmo, a felicidade dela, e dele também, claro, só existiria com a destruição de muita coisa, de muita gente que não tem a menor culpa por eles terem deixado a situação evolui até onde está. Por que casaram com as pessoas erradas? Eram mesmo as pessoas erradas? Por que se permitiram ter filhos com estas pessoas? Por que não se assumiram desde o primeiro beijo? Por que ele foi tão imbecil em relação a isso a vida toda?

A cabeça de Caio girava enquanto ele tentava convencer o Rodrigo que a Cassia não faria isso. Não a Cassia que ele conhece desde que ela nasceu, não a Cassia que o faz suar as mãos tensas quando está ao seu lado, não a sua Cassia. Deveria ser o trabalho. Deveria ser algum outro problema. Ele iria conversar com ela.
___

Era dezoito horas e quatorze minutos quando  Caio se despediu do Rodrigo, após acertarem que o ideal seria que ele, Caio, começasse a dedicar mais tempo à Cassia, saindo com ela ao menos uma vez por semana, para tentar não só descobrir o que está errado, mas, principalmente, para ajudar a reanimá-la.

Caio ligou o celular. Três chamadas não atendidas. Duas de Cassia e uma de Anna. Telefonou imediatamente.

“Oi, meu amor, me desculpe. Me perdoe. Você não vai acreditar quem apareceu aqui e me chamou para uma conversar de quase uma hora e meia: seu marido.”

Ele nem pensou em ligar para sua esposa. Não era prioridade.

Caio, então contou para Cassia toda a conversa, detalhe por detalhe, antes de perguntar:

“Cá, nossa distância está lhe fazendo infeliz? É essa nossa situação que está lhe deixando assim?”

Cassia riu, nervosa.

“Infeliz?”

“É. O Rodrigo não teria como errar.”

Ela realmente andava desanimada, sem ânimo, estressada, mas não sabia por quê. A correria do dia a dia, trabalho, filho marido... Não tinha tempo para se preocupar com isso.

“Meu amor, tem tanta coisa na vida para me deixar assim. Não se preocupe. O importante é que agora vamos nos ver todas as semanas, certo?”

“Claro. Mas não é o bastante. Eu quero você feliz. É isso que importa, na verdade, você feliz.”

Ela sorriu.

“Meu amor, vendo você todas as semanas, estarei ótima!”

“Não. Sua felicidade não deve depender de um encontro semanal com ninguém.”

“Lindo, a bateria está acabando, mas você está errado. O que importa são nossos filhos, nossos cônjuges, as pessoas ao nosso redor. É o que importa e a gente vai ter que conviver com isso.”

“Não. Temos que encontrar algo melhor, alguma forma de...”

“Cá, meu amor, eu estou presa em um casamento horrível. Presa. E não pelo meu filho, não pelo seu afilhado. Estou presa pela relação que tenho com toda a família do Rodrigo, pelo o que eu represento para eles, para ele... Claro que meu filho também faz parte disto, mas filho não segura casamento. O resto todo à minha volta, não sei, mas talvez sim! Então, temos que aprender a conviver com isso, certo? Alô? Caio?”


Sem bateria no celular, sem o Caio naquela noite, tudo que restava a ela era seu marido e uma sessão infeliz de algum filme que ela não ligava qual, tudo que restava a ela era sua vida, real, pungente, vazia e infeliz.

sexta-feira, fevereiro 28

Olhos, meu lúbrico vício

Entregar-se de maneira absoluta e incondicional à mulher que se ama é romper todos os laços exceto o desejo de não perdê-la, o laço mais terrível de todos.

Tenho uma paixão especial por olhos. O brilho, a vivacidade e os contornos, independente de sua coloração natural. Principalmente olhos bem cuidados, bem emoldurados. Gosto de molduras feitas com lápis, sombra e rímel, molduras duras, fortes, intensas, preferencialmente escuras. Gosto também de olhos grandes e alegres. Já me apaixonei por olhos muito mais facilmente do que por boca ou por nariz ou por corpo. Já me apaixonei, fugazmente que seja, mais por olhos do que por personalidade e já desapaixonei pela falta de olhos interessantes.

Letícia, a loira do apartamento 115, é um bom exemplo. Dona de curvas alucinógenas circundando um corpo magro, toda dura e firme como as carnes de quem tem vinte e dois anos e pratica dança desde os oito, exala um cheiro lascivo, luxurioso, lúbrico, com o gosto mais afrodisíaco que já provei e ainda mescla uma alta voluntariedade com a sua permissiva subordinação. Como se Afrodite, Isis e Freia reencarnassem juntas na mesma pessoa. Quando dança, chama toda a atenção do palco para si. É impossível tirar os olhos de seus movimentos, algo entre o suave, o sensual e o elegante. Culta, devoradora de livros e de filmes, diz que nada é igual a transar comigo ouvindo “Touch Me”, da banda The Doors. É, ainda, uma ótima companhia para as conversas furtivas de pós-sexo, quando fala de sua nova coreografia. Adoro ouví-la falando de dança. Mas Letícia tem um grave e insuperável defeito: olhos caídos, murchos, foscos. Sempre que converso com ela, desvio o olhar de seus olhos e foco em sua boca carnuda e macia. Durante o sexo, se estou por cima, insisto em manter o rosto colado ao dela e, se estou por baixo, foco no suave oscilar dos seios. Mas com ela gosto mesmo é de ficar por trás, assim não preciso me preocupar com seus olhos medonhos, que já me fizerem desanimar completamente em pleno ato sexual e ter que precisar de muitos minutos e força de vontade, com foco em seu delicioso corpo, para conseguir me reanimar. Um pecado que me faz odiar Deus.

Maíra, a Sereia, é quase o oposto. A negra, do outro lado da cidade é extremamente voluptuosa, com um corpo muito parecido à “Bailarina na Barra”, do Botero (quadril largo, coxas realmente grossas e alguns bons quilos acima do peso ideal), e uma sensualidade inocente qual a “Venus de Urbino”, do Ticiano. A grande diferença da Sereia para as mulheres dos quadros acima são os seios enormes e, na medida do possível, firmes. Cheia de curvas. Inebriante. Libidinosa. Passista da Unidos da Vila Maria, quando samba pela quadra, com a bateria ensurdecedora fazendo os esqueletos tremerem, Sereia rouba para si muitos dos olhares que seriam da rainha de bateria. Até mesmo eu, que odeio samba, faço questão de comparecer à quadra de vez em quando para vê-la sambando deliciosa e lindamente. Linda! Tem, no rosto redondo, a boca com um desenho que lembra um coração, o nariz delicadíssimo, a pela suave com ar angelical e um surpreendente par de enormes olhos verdes. Verdes! Uma epopeia que quase faz meu cérebro explodir. Chega a ser perigoso olhar nos hipnotizantes olhos de Maíra durante o ato sexual.

Claro, evidentemente que eu sei não existir mulher perfeita, não me iludo. A perfeição da mulher reside em suas suaves e delicadas imperfeições, o que me faz me envolver com mulheres consideradas muito fora do padrão de beleza a qual meus amigos, que não entendem nada de mulheres, acreditam que eu mereça manter. Mas o que aconteceu com a Claudete, a mulher dos lindos olhos negros enjaboticabados, foi realmente um erro, que começou, quero crer eu, em sua concepção. Vinda de uma mãe com o nariz que a fazia se assemelhar a um porco e um pai com excesso de pelos pelo corpo, inclusive no rosto, tem o rosto marcado pelas cicatrizes causadas pelo excesso de acnes. Convive atualmente com uma excessiva insegurança, que a imerge na leve depressão e a faz buscar refugio na comida, deixando-a com excesso de peso. Romântica e sonhadora, adora músicas bregas – de Roberto Carlos aos “pagodes farofa” que tanto faz sucesso nas rádios –, mas tem a sabedoria de deixar o romantismo de lado para aplacar sua carência afetiva e emocional. Ama o sexo, ignorando ser libido excessiva uma válvula de escape, uma fuga e uma busca frenética da recompensa sentimental do gozo. E, desta forma, tem uma das melhores felações da cidade, conforme comprovei no dia de um dos meus maiores porres. Um erro meu. Um erro da vida.

Mas nenhum problema se assemelha ao da existência de Tarsila. Mulher jovem, elegante e bem humorada, Tarsila possui pés delicados e usa salto alto com sensualidade elegante, como se a Altynai Asylmuratova fosse uma jovem diretora de banco. Tem as esbeltas pernas deliciosamente torneadas. As nádegas, do tamanho exato entre o pequeno aceitável e o grande delicioso, são carnudas, musculosas e arredondadas na medida certa. Os seios, quentes, repousados delicadamente em seu corpo, são relaxados, firmes e apontados para cima, com o tamanho pouco maior ou pouco menor que minha mão. Tem o pescoço tão delicado, frágil e ao mesmo tempo sensual, que teria medo de mordê-lo.  Magra com curvas levemente acentuadas, não faz o tipo de mulher que estaria na capa de alguma revista masculina desta segunda década do século XXI, por isso, perfeita.

O primeiro grande problema começa quando subimos o olhar a partir de seu pescoço. Tarsila tem o rosto delicado, com lábios grossos, boca grande, dentes brancos e o sorriso dos mais puro e cativante que já vi. O nariz é do tamanho simétrico ao do rosto, os longos cabelos são macios, volumosos, suaves e levemente arruivados, e as sobrancelhas, ligeiramente grossas, dão o contorno perfeito a seus olhos. E que olhos! A mulher que permeia meus sonhos tem os dois olhos mais lindos que o mundo já fez. Muito mais hipnotizantes que os da Sereia do outro lado da cidade. São olhos largos e brilhosos, com suave delineamento felino, de íris enormes, pupilas dilatadas e uma vivacidade tão intensa que me faz sorrir feliz só de olhar para estes dois portais do amor. Olhos para se deixar hipnotizar. Os olhos da minha vida.

O segundo problema começa logo nos primeiros cinco minutos de qualquer conversa com a Tarsila e sua fala sorridente de olhar apaixonante. Divertida, engraçada, riso frouxo, simpática e segura, Tarsila fala com facilidade sobre qualquer assunto, sempre com paixão, com entusiasmo juvenil, seja sobre sua moderna forma de pensar, seu vicio em rock e suas várias vertentes, seja sobre o mercado financeiro, sobre moda, sobre piadas infames, sobre gastronomia ou sobre sua namorada e o quanto a monogamia a faz bem. É, namorada. Homossexual sem libido algum para homens. É justamente quando sua vida amorosa vira assunto que a paixão em seus olhos floresce ainda mais, transborda, fazendo os lindos e apaixonantes olhos brilharem de forma única e até mais viva que o próprio Sol. Olhos que nunca serão meus. Olhos que são meu inferno.

sábado, junho 8

Amor, II

Julia tinha onze anos quando, em seu primeiro dia de aula na nova escola, conheceu Mário, da mesma idade que ela. Tímida e retraída, tudo que queria era não ser notada, para que ninguém reparasse nas manchas roxas que seu pai espalhava pelo seu corpo todo quando ele chegava bêbado em casa, as quais Julia tentava esconder a todo custo, mas Mário era o popular, do tipo que falava com todo mundo, mandão, briguento, garoto problema; e nunca deixaria uma garota linda como Julia ficar de canto, isolada.

A amizade nasceu naquele dia, mas eles não perceberam de imediato. Apenas no ano seguinte realmente ficaram grudados um no outro e assim foi pelos próximos sete anos, até o dia em que o pai de Julia, depois de quase três anos sem beber e, consequentemente, sem bater nela, foi demitido, tomou um porre e, mesmo com a filha já com dezoito anos, transformou toda a frustração e raiva que sentia em manchas roxas pelo corpo dela, só porque Julia não havia ajudado a mãe a lavar a louça. Mário e Julia romperam a amizade. Culpa de Mário, que queria a todo custo bater no pai da amiga, dar uma surra, uma lição, matar o desgraçado-filho-de-uma-puta para que este aprendesse a não mexer com a Julia. Culpa dela que não deixou o Mário sequer chegar perto da casa onde ela morava, pois ela amava o pai, que era carinhoso e cheio de amor, que fazia tudo por ela e que só tinha esse pequeno defeito que era altamente compreensível.

Nunca mais se falaram.

Quando transaram pela primeira vez perceberam que tinham nascido um para o outro. Tinha se passado quinze anos da velha briga. Um reencontro inesperado em um sebo no centro da cidade, que fez a saudade apertar um nó cego, que os fizeram se abraçaram como se fosse a última vez, o que levou a mútuos e múltiplos pedidos de desculpas, o que levou a um convite para uma cerveja no boteco ao lado, o que levou a outras e mais outras cervejas, o que gerou uma leve ebriedade, o que motivou o Mário a acompanhá-la até a casa onde Julia morava sozinha e onde tinham varias cervejas na geladeira, algo que ele só descobriu porque Julia insistiu que ele entrasse um pouco e conhecesse a casa que ela montou sozinha, que não os fez perceber que ficaram quatro horas colocando a conversa em dia, tempo em que Julia aproveitou para mostrar ao velho amigo que, após tantos cursos de culinária e anos como chef de um restaurante bistrô num bairro bucólico da cidade, ele tinha todos os motivos do mundo para nunca mais perder contato com ela, que o fez se apaixonar imediatamente pela velha amiga, o que o forçou a convidá-la para saírem dali e irem juntos a uma danceteria bacana, o que a fez querer tomar banho, fazendo Mário usar a velha e chata brincadeira de esfregar as costas da amiga, que ficou sem graça com a ideia, deixando ele perceber que a ideia a excitara, o que o fez ir até ela, puxá-la pela cintura e beijá-la. Transaram. E, logo na primeira transa, toda a velha vontade por violência de Mário encontrou o prazer pela surra que Julia tinha.

Casaram-se um ano depois e nunca mais se separaram, mas os primeiros meses da relação foram incrivelmente difíceis. Culpa de Mário, que no começo fazia o tipo amoroso demais, carinhoso demais, cuidadoso demais, deixando a violência e a virilidade para o sexo, somente. Culpa de Julia, que aprendera que amor vem sempre com boa dose de violência, não só com carinho e cuidado, o que era sinal de virilidade, não só no sexo. Foi em uma discussão que Julia, cansada do marido amoroso e molenga demais, acusou Mário de ser maricas, de não ser homem o suficiente para bater em mulher e afirmou que os tapinhas que ele lhe dava na cama mal faziam cócegas. Foi ali que ele percebeu o quanto Julia sentia falta do pai, morto ao tropeçar no ar enquanto caminhava bêbado pela rua e cair no meio da via para ser atropelado por um caminhão que não teve tempo de frear. Julia tinha vinte anos e nunca mais apanhara.

Naquela mesma noite, a da discussão, enquanto ouvia os gritos quase histéricos da esposa, Mário tomou duas doses de uísque, para tomar coragem e terminar com a briga batendo em Julia com a cinta, deixando a fúria cegar, com força, sem dó, para machucar de verdade, mesmo depois que ela implorava perdão e suplicava para que parasse. Exatamente do jeito que ela queria. Quando ele enfim terminou, Julia, jogada ao chão, chorava de dor e de prazer. Naquela mesma noite Mário descobriu uma Julia serviente, obediente, cuidadosa como nunca fora. Ela nunca mais deixou de apanhar. Passou a ter que esconder os roxos quando andava pelas ruas e encenar indignação e medo quando alguém a aconselhava a ir para a delegacia, denunciar o marido violento.

Na noite em que saíram para comemorar o quinto ano de casados, após um delicioso jantar romântico, com o amor cada vez maior, foram ao Motel. Mário preparara uma surra especial para Julia, com inúmeros e estranhos acessórios, com a ideia de fazer com que ela uivasse como nunca. E foi o que aconteceu. E quanto mais ele batia, mais ela gritava, mais ela berrava, mais ela urrava. E quando Julia finalmente uivou, fazendo o casal gozar junto, numa espiral tão alucinante de prazer, ela desmaiou. De repente, a porta do quarto do Motel foi arrombada e oito policiais invadiram o espaço.

Julia acordou no hospital exatamente no momento em que Mário sentia o cassetete entrar seco pelo seu ânus, depois de apanhar como nunca dos policiais, tudo para aprender como é gostoso o que fazia com a mulher naquele Motel. E enquanto Julia entrava em desespero, gritando ao saber que o marido fora preso e que nunca mais faria mal com mulher alguma, Mário desmaiava de dor para nunca mais acordar. Ela tentou fugir, sair correndo, ir ao encontro dele, queria salvá-lo, queria amá-lo, mas não tinha forças, tudo doía, deliciosamente; não foi difícil o enfermeiro contê-la e anestesia-la.

Julia se matou, enfiando no pescoço um bisturi que acabara de roubar, assim que saiu do hospital e encontrou o batalhão de repórteres de todos os tipos. Enfiou o bisturi no pescoço como resposta ao ser perguntada se sentia alívio ao saber que o agressivo e abusivo marido morrera e não mais a faria mal. Enfiou o bisturi no pescoço pouco depois de entregar para a repórter uma carta que contava o erro de toda a sociedade ao julgar Mário um criminoso. Enfiou o bisturi no pescoço porque, por mais que tenha apanhado durante toda a vida, nunca imaginou ser possível sentir uma dor como a da perda do grande amor da sua vida, a única dor verdadeiramente insuportável.

sexta-feira, maio 31

A música certa

Alguma música, a música certa, que é capaz de acabar com o silêncio isolante, angustiante e desesperador que amplia a saudade e a dor da falta, que amarga ainda mais o gosto da rejeição, que nenhum cigarro desfaz e nem meia garrafa de Bourbon consegue esmaecer. Em uma rádio, em um dos seus vários discos ou na internet, esta música ideal para encher o pulmão de ar e tirar da cabeça os pensamentos desconexos, onde está?

Ela está sentada em seu sofá vermelho, no amplo e vazio apartamento, com o notebook no colo, enormes fones de ouvido na cabeça, os pés repousados em uma banqueta amarela, de madeira, e a garrafa do uísque, pela metade, na mão esquerda, enquando procura nos seus milhares de arquivos de música digital. O cabelo, ruivo com mechas negras, está um emaranhado de nós.  Os olhos amendoados, quase cor de mel, grandes, estão avermelhados. O lápis e a sombra pretos escorreram e batom ficou nas bocas que encontrou na ultima noite e só a fizeram se sentir pior, mais vazia.

O relógio marca que o almoço deveria estar saindo, mas ela não tem fome. Só quer descobrir a música perfeita e exata para aquele momento, para cantar alto, gritando, e tentar colocar alguns dos demônios para fora por alguns minutos, mas esta música não existe, ou se existe ela não sabe onde está, nem como achar.

De repente uma voz grave e familiar vem de algum lugar. Ela para e presta atenção, tirando os fones do ouvido. É o Iggy Pop! Ela corre até a janela, enfia a cabeça para fora e grita o mais alto e forte que consegue:

- Aumenta o som aí!

I been hungry way down where it hurts waiting for a reason. I been hungry like a lot of guys. I wanna be beside you”.

Sente os olhos encher d’água quando tenta cantar junto. A música preenche o vazio no estômago e ela chora. Emoções transbordam, exatamente como ela esperava, como ela sabia, como sempre acontece quando se ouve a música certa.

A música volta a ser tocada e ela percebe que o som não vem da janela, mas da porta. Pelo olho mágico, vê o filha da puta que a abandonou, que a traiu, que a deixou na merda, que a faz sofrer. Pelo olho mágico ela vê o filha da puta que levou do apartamento tudo que era dele, que deixou a sala vazia, o quarto vazio, ela vazia. O filha da puta que ela ama e que não consegue viver sem. Pelo olho mágico ela vê, mas precisa abrir a porta para crer. E ela a abre.

Beside You by Iggy Pop on Grooveshark

segunda-feira, outubro 8

Bárbara Bacon

      - Oi! Tudo bem?

      - Oi! Como vai? Pensei que não viria aqui hoje? 

      - Ah, eu ‘tava numa reunião chata, não consegui sair para almoçar antes. 

      - Então vai querer um completo hoje? 

      - Isso, um completo, por favor.

      Enquanto preparava o cachorro quente para ela, ele aproveitava para olhar de soslaio para as justamente semostradoras pernas brancas da sua cliente preferida, a quem eu via pela primeira vez naquele dia, e a quem chamava carinhosamente de Bárbara Bacon, apesar dela não o saber. Bárbara seria porque “ela é mais que perfeita”; enquanto o bacon seria porque “bacon é vida, e ela, a Bárbara, ressuscita qualquer coisa”, e também por ter, novamente nas palavras dele, “um lombo tão delicioso de se olhar, que o sabor deve ser de matar.

      Ele tem sessenta e quatro anos, é viúvo, pai de uma filha e avô de dois netos. Os poucos cabelos que lhe restam, ao redor da cabeça, apenas, é alvo como a neve, assim como sua grossa barba. Tem ainda uma nada discreta barriga e, por fim, se chama Noel. Por isso, colocou o nome de sua barraca de cachorros quente, que você pode encontrar sempre estacionada em frente ao prédio mais alto daquela avenida cheia de empresas, na zona Sudoeste da cidade, de “Dogs Natalinos do Papai Noel”, cujo logotipo é um trenó sendo puxado por quatro surrealistas cachorros quente com patas, rabo e cabeça de dachshund. É, de um modo geral, conforme atestado por todos os seus clientes e amigos, um sujeito normal, divertido, pacifico, calmo e tranquilo. A esposa se foi cedo, vitima de atropelamento, e, para que tivesse maior liberdade de horário para criar sua então pequena filha, decidiu trocar a vida de auxiliar administrativo pela barraca de cachorro quente, que hoje já conta com quase vinte anos de tradição.

      Bárbara Bacon, porém, conforme ele me confessa sempre que vou comer um delicioso cachorro quente em sua disputada barraca, desperta nele os sentimentos mais confusos, estranhos e inexplicáveis. Diz que vai dos mais nobres aos mais primatas, passando, evidentemente, pelos mais brutais. O problema é que Bárbara Bacon (eu não conheço seu nome real) tem exatos trinta e quatro anos a menos que Noel. A paixão e o amor parecem então absurda e sem propósito, como se, só por ser velho, ele não pudesse mais se apaixonar por mulheres jovens e encantadoras. Mas é muito, muito fácil compreendermos os motivos e os sentimentos todos que ele sente ao olhar para ela.

      Bárbara Bacon, é "uma mulher esmerada por Deus em uma noite após a maior luxúria a qual certamente já viveu." É branca como leite pasteurizado, alta para os padrões femininos nacionais, pés delicados, pernas grossas e deliciosas que terminam em uma linda e perfeita bunda vistosamente aliciante, tem a barriga quase que lisa e os seios espetacularmente diminutos, “do tamanho de minha boca”, arrisca Noel. A “moça dos dentes ligeiramente tortos”, como ele mesmo diz quando quer disfarçar seu encanto por ela, ainda “tem a boca simplesmente linda, com lábios grossos, feitos com carne macia e suculenta, os quais dá vontade de morder ou mordiscar por horas sem fim”. Boca que gosta de dar risadas. Gosta de gargalhar na verdade. E, conforme Noel, que se deleita ao vê-la quase que diariamente, “quando ela sorri, seus os olhos sorriem juntos, ganhando um brilho solar e se assemelhando a uma angelical supernova, como se cuidadosa e misteriosamente fosse criada por todos os querubins existentes, e que estes trabalhassem exclusivamente para manter a supernova em questão, angelical, como disse, sempre em estado inicial de sua formação, para nunca esfriar, nem nunca desaparecer, deixando assim o olhar dela brilhando infinita e hipnotizantemente”, resume bem em seus momentos de quase poeta. Enfim, são sorrisos largos, vastos, que contagiam, que fazem qualquer um sorrir quando os veem, e que “apaixonam com maior facilidade que o canto de duas mil sereias juntas.”

      Mas, segundo Noel, Bárbara Bacon tem algo de misterioso que a deixa ainda mais encantadora. Ele jura ser uma das poucas pessoas que sabem o que é, e que saber o que é ainda mais sedutor e arrebatador, afirmando que "quem a vê, pelas ruas, de longe, ou convive com ela diariamente, no trabalho, olha para uma mulher divertida e, ao mesmo tempo, elegante, com uma inteligência refinadíssima, dessas que dá medo em muitos homens. Linda, com aquela beleza clássica, que se impõe, cheia de segurança". Porém, ele afirma existir uma outra Bárbara Bacon, que só enxerga quem a vê de muito perto, com muita atenção, e com olhos treinados. De acordo com Noel, Bárbara esconde dentro si, "uma menina completamente angelical, inocente, pura, quase carente. É alguma coisa em sua boca e em seus olhos, e que só se consegue perceber olhando de muito perto". E, se o sorriso apaixonou Noel e o transformou em um moleque de doze anos, essa dualidade aparente o escravizou e desnorteou o velho em definitivo.

      Tudo isso é muito importante que seja entendido, e que se reforce o quão são e normal é Noel. Um avô exemplar, que ama seus netos. Na verdade, um ser humano tão incrível, que ama crianças tal qual seu famoso xará. E nunca, nunca foi de machucar ninguém, menos ainda mulher alguma.

      Ontem, porém, quando Bárbara foi almoçar o cachorro quente da barraca do Noel, como faz duas ou três vezes por semana, o calor era extremo, e o pobre Noel não se sentia muito bem. Talvez por não ter tomado seu remédio tarja preta nos últimos cinco dias, talvez por ter voltado a beber, ou talvez pela insolação, não se sabe, mas algo fez ele sentir todos os instintos mais primitivos se apossarem dele com força e fúria insuperáveis quando a viu de mini saia colorida, salto alto e camisa branca. Hipnotizado, as disfarçadas olhadelas de soslaio deram lugar a desavergonhadas encaradas. Ele jura que Bárbara parecia gostar do jeito que ele a olhava, mas testemunhas afirmam que o olhar dela era pura preocupação com a aparência espantosamente avermelhada do rosto e do pescoço de Noel. Tanto que, ainda de acordo com testemunhas, quando ela tocou nele, o fez primeiro com o dorso da mão, na testa de Noel, pois acreditava que o pobre estivesse com febre, e que, quando levou sua mão ao pescoço dele, foi exclusivamente pelo fato de não ter conseguido tirar conclusões decisivas em relação à temperatura corpórea do velho através de sua testa. Mas ele sentia a mão de Barbara Bacon tocar nele pela primeira vez. E ela o tocava voluntariamente, o que o fez sentir não só a temperatura fresca do toque dele, mas algo elétrico também, o que fez seu corpo inteiro tremer e, ao por algum processo químico desencadeado, Noel saiu de si.

      Ele disse, para mim, ter sentido a vista turvar. E afirma não se lembrar de mais nada do que aconteceu após o toque dela em seu pescoço. Lembra apenas do arrepio. De qualquer modo, todos que estavam ali, ao redor, dizem que tudo aconteceu muito de repente e que não poderiam imaginar que o velho fosse tão ágil. Mas Noel, quando sentiu a mão de Bárbara Bacon em seu pescoço, ali, quase em sua nuca, e viu o corpo inteiro dela tão próximo dele assim, como nunca estivera, deu uma passo à frente e rapidamente, antes mesmo que alguém percebesse, cravou os dentes no ombro direito da moça. Cravou, eu disse. Com gosto. Com força. Mordeu chupando. Chupando forte. E, com suas mãos, Noel agarrou os aloirados cabelos dela e os puxou com força,  A coisa foi tão intensa, que até Bárbara dar por si e entender o que estava acontecendo, era tarde demais. As marcas do dente de Noel já estavam afixadas em seu ombro e, ao redor de toda a mordida, uma bola avermelhada tinha nascido. Estivesse ela sozinha ali, com ele, a coisa teria sido muito pior. Mas as três ou quatro pessoas em volta a ajudaram a tirá-lo de seu ombro. Dizem ainda que estas pessoas tiveram dificuldade enorme em segurar e conter o velho enquanto ele tentava se desvencilhar e partir de novo para cima de Bárbara Bacon tal qual um cão raivoso. Teve, inclusive, que ser dopado, antes que o pudessem levar ao hospital para exames.

      Hoje fui ao Hospital. Está sob efeito de medicamentos e amarrado à cama, pela violência raivosa que tinha quando ali chegou, querendo se levantar para correr atrás daquilo que ele tem chamado de "o grande amor de qualquer vida que já tenha tido", mas afirma categoricamente, e eu acredito nele, que não se lembra de absolutamente nada. E o faz com tristeza, porque se chegou a "sentir o gosto daquela pele com cheiro de hidratante importado", não lembra e afirma saber que não terá outra oportunidade, nunca mais.

      Bom, eu acredito, na verdade, o contrário.

      Na saído do Hospital, olhei para a recepção e, para minha surpresa, Bárbara Bacon estava ali, com sua brancura e sua lindeza, desfilando seu corpo perfeito e ornamentada com uma curiosa marca no ombro direito. Definitivamente, olhando agora para ela pela segunda vez, é mais, muito mais do que o velho Noel insiste em falar.